"A vida é uma tempestade, meu jovem amigo. Você vai relaxar sob o sol num momento e no seguinte será atirado às rochas. O que faz de você um homem é o que faz quando a tempestade vem."
- Alexandre Dumas
Uma amiga que encontrei (amizades não se fazem, se encontram) me disse certa vez:
- Sabe André, eu descobri que o oposto do amor não é o ódio, mas o medo. O medo nos afasta das pessoas. Nos afasta de nós mesmos.
Guardo essa reflexão até hoje e ela se aprofundou nas palavras de um escritor que muito admiro:
Deixo também o texto e uma fala da personagem (linda) Amelie Poulain:
"Quem vive com medo, vive pela metade."
Comemorar o MEDO.
MIA COUTO, CONFERÊNCIA DO ESTORIL
SOBRE SEGURANÇA
2011.
O medo foi um dos meus primeiros
mestres. Antes de ganhar confiança em celestiais criaturas, aprendi a temer
monstros, fantasmas e demônios. Os anjos, quando chegaram, já era para me
guardarem. Os anjos atuavam como uma espécie de agentes de segurança privada
das almas.
Nem sempre os que me protegiam sabiam
da diferença entre sentimento e realidade. Isso acontecia, por exemplo, quando
me ensinavam a recear os desconhecidos. Na realidade, a maior parte da
violência contra as crianças sempre foi praticada, não por estranhos, mas por
parentes e conhecidos. Os fantasmas que serviam na minha infância reproduziam
esse velho engano, de que estamos mais seguros em ambiente que reconhecemos. Os
meus anjos da guarda tinham a ingenuidade de acreditar que eu estaria mais
protegido apenas por não me aventurar para além da fronteira da minha língua,
da minha cultura, do meu território.
O medo foi, afinal, o mestre que mais
me fez desaprender. Quando deixei a minha casa natal, uma invisível mão
roubava-me a coragem de viver e a audácia de ser eu mesmo. No horizonte
vislumbravam-se mais muros do que estradas. Nessa altura, algo me sugeria o
seguinte: que há neste mundo mais medo de coisas más do que coisas más
propriamente ditas.
No
Moçambique colonial em que nasci e cresci, a narrativa do medo tinha um
invejável casting (elenco) internacional.
Os chineses que comiam crianças, os chamados terroristas que lutavam pela
independência, e um ateu barbudo com um nome alemão. Esses fantasmas tiveram o
fim de todos os fantasmas: morreram quando morreu o medo. Os chineses abriram
restaurantes à nossa porta, os ditos terroristas são hoje governantes
respeitáveis, e Karl Marx, o ateu barbudo, é um simpático avô que não deixou
descendência.
O preço dessa construção de terror
foi, no entanto, trágico para o continente africano. Em nome da luta contra o
comunismo cometeram-se as mais indizíveis barbaridades. Em nome da segurança
mundial foram colocados e conservados no poder alguns dos ditadores mais
sanguinários de toda a história. E a mais grave dessa longa herança de
intervenção externa é a facilidade com que as elites africanas continuam a
culpar os outros pelos seus próprios fracassos.
A guerra fria esfriou, mas o
maniqueísmo que a sustinha não desarmou, inventando rapidamente outras
geografias do medo, a oriente e a ocidente. E porque se trata de entidades
demoníacas, não bastam os seculares meios de governação, precisamos de
intervenção com legitimidade divina. O que era ideologia passou a ser crença. O
que era política tornou-se religião. O que era religião passou a ser estratégia
de poder.
Para fabricar armas é preciso
fabricar inimigos. Para produzir inimigos é imperioso sustentar fantasmas. A
manutenção desse alvoroço requer um dispendioso aparato e um batalhão de
especialistas que, em segredo, tomam decisões em nosso nome. Eis o que nos
dizem: “Para superarmos as ameaças domésticas precisamos de mais polícia, mais
prisões, mais segurança privada e menos privacidade. Para enfrentarmos as
ameaças globais precisamos de mais exércitos, mais serviços secretos e a
suspensão temporária da nossa cidadania.” Todos sabemos que o caminho
verdadeiro tem que ser outro. Todos sabemos que esse outro caminho poderia
começar, por exemplo, pelo desejo de conhecermos melhor esses que, de um e de
outro lado, aprendemos a chamar de “eles”.
Aos adversários políticos e militares
juntam-se agora o clima, a demografia e as epidemias. O sentimento que se criou
é o seguinte: a realidade é perigosa, a natureza é traiçoeira e a humanidade,
imprevisível. Vivemos, como cidadãos e como espécie, em permanente situação de
emergência. Como em qualquer outro estado de sítio, as liberdades individuais
devem ser contidas, a privacidade pode ser invadida e a racionalidade deve ser
suspensa. Todas essas restrições servem para que não sejam feitas
perguntas, como por exemplo estas:
-
Por que motivo a crise financeira não atingiu a indústria do armamento?
-
Por que motivo se gastou, apenas no ano passado, um trilhão e meio de dólares
em armamento militar?
-
Por que razão os que hoje tentam proteger os civis na Líbia são exatamente os
que mais armas venderam ao regime do coronel Kadafi?
-
Por que motivo se realizam mais seminários sobre segurança do que sobre
justiça?
Se queremos resolver e não apenas
discutir a segurança mundial, teremos que enfrentar ameaças bem reais e
urgentes. Há uma arma de destruição massiva que está sendo usada todos os dias,
em todo o mundo, sem que seja preciso o pretexto da guerra. Essa arma chama-se
fome. Em pleno século XXI, um em cada seis seres humanos passa fome. O custo
para superar a fome mundial seria uma fração muito pequena do que se gasta em armamento. A fome
será, sem dúvida, a maior causa de insegurança do nosso tempo.
Mencionarei ainda uma outra
silenciada violência. Em todo o mundo, uma em cada três mulheres foi ou será
vítima de violência física ou sexual durante o seu tempo de vida. É verdade que
sobre uma grande parte da população do nosso planeta pesa uma condenação
antecipada pelo fato simples de serem mulheres.
A nossa indignação, porém, é bem
menor que o medo. Sem dar-nos conta, fomos convertidos em soldados de um
exército sem nome e, como militares sem farda, deixamos de questionar. Deixamos
de fazer perguntas e discutir razões. As questões de ética são esquecidas,
porque está provada a barbaridade dos outros. E porque estamos em guerra, não
temos que fazer prova de coerência, nem de ética, nem de legalidade.
É sintomático que a única construção
humana que pode ser vista do espaço seja uma muralha: a Grande Muralha, que foi
erguida para proteger a China das guerras e das invasões. A Muralha não evitou
conflitos nem parou os invasores. Possivelmente morreram mais chineses
construindo a muralha do que vítimas das invasões que realmente aconteceram.
Diz-se que alguns dos trabalhadores que morreram foram emparedados na sua
própria construção. Esses corpos convertidos em muro e pedra são uma metáfora
do quanto o medo nos pode aprisionar. Há muros que separam nações, há muros que
dividem pobres e ricos, mas não há hoje, no mundo, um muro que separe os que
têm medo dos que não têm medo. Sob as mesmas nuvens cinzentas vivemos todos
nós, do sul e do norte, do ocidente e do oriente. Citarei Eduardo Galeano
acerca disto, que é o medo global, e diz ele:
"Os que
trabalham têm medo de perder o trabalho. Os que não
trabalham têm medo de nunca encontrar trabalho. Quando não têm
medo da fome, têm medo da comida. Os civis têm
medo dos militares. Os militares
têm medo da falta de armas, e as armas têm
medo da falta de guerras."
E se calhar (acrescento agora eu), há
quem tenha medo de que o medo acabe.
“Ainda que não possamos adivinhar o futuro, sim, temos ao menos o direito de imaginar como queremos que seja. Em 1948 e em 1976, as Nações Unidas proclamaram extensas listas de direitos humanos; mas a imensa maioria da humanidade não tem mais do que o direito de ver, ouvir e calar. Que tal se começarmos a exercer o jamais proclamado direito de sonhar? Que tal se delirarmos, um pouquinho? Vamos a fixar os olhos mais além da infâmia, para adivinhar outro mundo possível.
- O ar das ruas limpo de todo o veneno que não venha dos medos e das paixões humanas;
- Os carros sendo esmagados pelos cães;
- As pessoas não mais dirigidas pelos carros, nem programadas pelo computador, nem compradas por supermercados, nem também assistidas pela TV;
- A TV deixará de ser o membro mais importante da família e será tratada como um ferro de passar ou máquina de lavar roupa;
- Será incorporado aos códigos penais o crime de estupidez para aqueles que cometem: viver para ter ou para ganhar ao invés de viver para viver simplesmente, assim como canta o pássaro sem saber que canta e como brinca a criança sem saber que brinca;
- Os historiadores não mais acreditarão que os países gostam de ser invadidos;
- Os políticos que os pobres adoram comer promessas;
- Ninguém viverá para trabalhar, mas todos trabalharão para viver;
- Os economistas não chamarão mais o nível de vida de nível de consumo e nem chamarão de qualidade de vida a quantidade de coisas acumuladas;
- Os cozinheiros não mais acreditarão que as lagostas amam ser fervidas vivas;
- A morte e o dinheiro perderão seus poderes mágicos e nem por falecimento e nem por fortuna um canalha se tornará um virtuoso cavalheiro;
- Ninguém levará a sério alguém que não seja capaz de tirar sarro de si mesmo;
- O mundo não estará em guerra contra os pobres, mas contra a pobreza e a indústria militar não terá escolha a não ser declarar falência;
- Nenhum país irá prender os rapazes que se recusarem a cumprir o serviço militar, mas aqueles que quiserem podem servi-lo;
- A comida não será uma mercadoria nem a comunicação um negócio porque a comida e a comunicação são direitos humanos;
- Ninguém morrerá de fome;
- As crianças de rua não serão mais tratadas como lixo, porque não haverá mais crianças de rua, as crianças ricas não serão tratadas como se fossem dinheiro, porque não haverá mais crianças ricas;
- A educação não será privilégio daqueles que podem pagá-la;
- A polícia não será a maldição de quem não possa comprá-la;
- A justiça e a liberdade, irmãs siamesas condenadas a viver separadas, serão novamente juntas de volta, bem grudadinhas, costas com costas;
- Na Argentina, as “Loucas de la Plaza de Mayo” serão um exemplo de saúde mental porque elas se negaram a esquecer nos tempos de amnésia obrigatória;
- A Santa Madre Igreja corrigirá algumas erratas das tábuas de Moisés, e o sexto mandamento mandará festejar o corpo, a igreja também ditará outro mandamento que Deus havia esquecido: “amaras a natureza da qual fazes parte”;
- Serão reflorestados os desertos do mundo e os desertos da alma;
- Os desesperados serão esperados e os perdidos serão encontrados, porque eles se desesperaram de tanto esperar e se perderam de tanto procurar;
- Seremos compatriotas e contemporâneos de todos os tenham vontade de beleza e vontade de justiça, tenham nascido onde tenham nascido e tenham vivido quando tenham vivido, sem se importarem nem um pouquinho com as fronteiras do mapa e ou do tempo,
- Seremos imperfeitos porque a perfeição continuará sendo um chato privilégio dos Deuses;
- Neste mundo trapalhão, seremos capazes de viver cada dia como se fosse o primeiro e cada noite como se fosse a última.” - Eduardo Galeano
Você não acredita na realidade que vê. Não pode ser verdade!
"O que está por trás dessas cortinas tão vibrantes?"
Chega a sentir-se apavorad@, impotente....pequen@.
Então vê que não pegou o caminho mais fácil, mais curto, mais vendido.
Neste outro vai deixar sua trilha de sangue, suor e lágrimas. Vai perder muita coisa. Pessoas. Mas vai seguir. Vai perder-se também.
Histórias da infância trazem a esperança de que depois da fase ruim logo logo tudo se resolve. Mas não se resolve. Não logo. Começa a pensar se não está ficando louc@, ouvindo vozes. Muitas vozes: pedidos de mães desesperadas, gemidos de jovens assassinad@s e o silêncio de um povo calado (a força, a força). Ouve o choro, a raiva e a revolta contida de séculos. (Explosão)
Dos cacos vai surgindo outro ser. Não é mais a pessoa ingênua do começo da caminhada. Sentiu na boca o gosto da injustiça que não escreveram nas livros da escola, nem no jornal, nem na novela.
Volta os olhos pra trás e vê que só havia um caminho, de fato. Que o resto era uma peça numa caixa de areia onde ninguém se move. Lamenta-se pelas almas que escolheram ficar e segue. Agora tem companheir@s que precisam de você. E você - descobriu - precisa del@s, louc@s como são.
Agora a sombra do monstro já não é tão grande, nem as noites tão frias. Sente que caminha com passos firmes o caminho que escolheu. O sol vem raiando, triunfante como a verdade, anunciando o fim da madrugada. Faremos, junt@s, um enorme e barulhento DESPERTAR.